Criação

Ao descrever os processos de subjetivação, uma dimensão importante da interiorização do lado de fora, Foucault estabelece paralelos com as pregas e dobras de um tecido, que preserva as suas características mesmo quando encontra-se escondido e imperceptível ou seja dobrado. Colocado no interior do exterior, o homem torna-se um passageiro, articulando seu pensamento pelas relações de forças ou de poder; pelas formas estratificadas do saber – a "absoluta memória"; e por uma "relação consigo" que adquire independência e desenvolve uma dimensão própria. Para o autor [1], o sujeito torna-se responsável por ordenar "uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si".

A realização das imagens reunidas aqui exige contato com o mundo natural, da exterioridade e do lado de fora, das relações de forças do poder (instituições mantenedoras do parque e da cidade, de segurança etc.) e dos estratos do saber (educação, tecnologia, cultura etc.) sob a moderação do corpo e dos processos de subjetivação da pessoa que fotografa. Para Foucault [2], subjetividades mudam entre relações de submissão ou sujeição; de encantamento; de apego; e de resistência. A relação consigo está sempre se fazendo, mudando de modos e se metamorfoseando, "não para de renascer, em outros lugares e em outras formas".

O saber é um aspecto fundamental dos processos de subjetivação. Pelo estudo da história, Foucault revela, por exemplo, a arbitrariedade de todas as instituições e a gratuidade de todas as certezas. Oferece uma crítica da atualidade que se esquiva de ditar prescrições para a ação, mas fornecer-lhe conhecimentos. Assim, tenta "diagnosticar o presente, dizer o que é o presente, dizer em que sentido nosso presente é diferente e absolutamente diferente de tudo o que não é ele", explica Veyne [3]. Foucault acredita ainda que "as pessoas se decidem sem uma boa razão, em geral simplesmente inventando uma, e aquelas que não querem mudar nada também não têm uma razão", conclui (Ibid.).

O pensamento de Foucault ajuda a compreender as imagens fotográficas, pois fornecem ferramentas para identificar motivação, contexto, histórias, bem como leituras possíveis no momento da interpretação. Os processos de subjetivação permitem conhecer as forças delineando características e referências do momento de concepção e desenvolvimento do projeto. Oferecem meios para descobrir os aspectos estéticos e ideológicos que muitas vezes parecem acidentais ou simplesmente estão escondidos, camuflados e até mesmo inconscientes. Estabilizam as dinâmicas da autoria, permitindo rastrear intenções e decisões tratadas frequentemente como intuitivas. Conferem maior densidade à proposta conceitual, liberando diferentes recursos para enfrentar os processos de criação ou seja os campos de investigação dos elementos usados nos ensaios. Por fim, abrem caminhos para uma manifestação visual, plástica, mais ética e verdadeira.

O corpo é fruto de seu período histórico, mesmo atuando sob o comando do pensamento. As relações de poder e de saber influenciam o seu comportamento e a sua subjetividade determina uma postura ética de vida, delineando hábitos, costumes, maneiras de fazer e se posicionar diante das coisas, conflitos, governos, ciências, religiões, sexos, loucuras etc. Entretanto, embora a subjetivação assuma, em alguns casos, caráter de sujeição, submissão e dependência ao outro, Foucault observa a capacidade de resistências possíveis. Conjunturas de poder e saber levam a relação consigo a renascer em outros lugares e outras formas, mudando de modo, metamorfoseando-se, pois "o homem nunca deixou de se constituir na série infinita e múltipla de subjetividades diferentes e que nunca terão fim" [4].

Desta forma, resistir e mudar são ainda caminhos para uma transformação de si por si próprio, segundo Foucault, um processo de estetização ou seja uma habilidade em desenvolver técnicas para trabalhar sua dimensão interior. Nos processos de subjetivação, a vontade, o querer, leva a pessoa à estetização ou melhor à iniciativas de liberdade, tratadas como invenções e escolhas individuais. Algo meio gratuito que não preenche uma necessidade ou satisfaça um fim específico. Na verdade, parece funcionar como um tipo de impulso misterioso, de energia para a tranquilidade da alma. Assim, acrescenta ainda que:

a contingência sempre nos fez ser o que éramos ou somos. O que é nem sempre foi; isto é, foi sempre na confluência de encontros, de acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem sempre as mais evidentes. [5]

Por tudo isso, elementos de histórias, bem como mecanismos de resistência e invenção ganham atenção especial na articulação da metodologia exploratória aplicada no desenvolvimento dos ensaios fotográficos, reunidos aqui. Além de considerar os sistemas de produção e significação da imagem, a experiência procura dar visibilidade às ações da pessoa responsável pela atividade ou seja a dimensão da autoria do exercício. Aspecto apoiado, principalmente, pelo pensamento de Foucault, quando discute modos de produzir, transformar e manipular coisas, enfatizando, por exemplo, aqueles processos que:

permitem aos indivíduos efetuarem um certo número de operações sobre os seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu próprio pensamento, sobre a sua própria conduta, e isso de tal maneira a transformarem-se a eles próprios, a modificarem-se, ou a agirem num certo estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural e assim por diante. [6]

 

1 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Trad.: Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
2 _______________ . A hermenêutica do sujeito. Curso dado no College de France (1981-1982). Tradução Marcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
3 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad.: Marcelo J. de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 201.
4 Ibid.: p. 179
5 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Estratégia Poder-saber. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2012, p. 449.
6 _______________ . Verdade e subjetividade (Howison Lectures). Revista de Comunicação e Linguagem, no. 19. Lisboa: Edições Cosmos, 1993, p. 4.